Migrantes e realeza geralmente não têm muito em comum, mas Berlim é um lugar especial. Na mitologia grega, o monarca Sísifo foi condenado pelos deuses a empurrar um enorme rochedo por uma ladeira íngreme. Pouco antes de chegar ao topo, porém, a grande pedra rolava para baixo e o acusado tinha que recomeçar sua tarefa desde o início, uma e outra vez, por toda a eternidade. Da mesma forma absurda e frustrante, a maioria dxs migrantes que chegam a Berlim e não podem registrar seu endereço [Anmeldung] estão destinadxs a enfrentar uma rejeição atrás da outra. Seja para abrir uma conta bancária, acessar um seguro de saúde, assinar um contrato de trabalho, obter uma identificação fiscal ou ter um endereço oficial onde se possa receber correspondência: na Alemanha, a Anmeldung é necessária para quase todos os tipos de formalidades.
Este obstáculo burocrático generalizado a qualquer tentativa de deixar para trás a fragilidade que a migração sempre implica é exacerbado pelo problema social mais urgente do momento: a Alemanha tem um déficit habitacional de 700.000 casas.[1] Em Berlim em particular, o aumento dos aluguéis e a oferta extremamente limitada de apartamentos disponíveis no centro da cidade estão cada vez mais levando as pessoas para a periferia da cidade, isolando-as dos principais locais de trabalho, cultura, saúde e socialização. A moradia deixou de ser um direito social orientado para a satisfação de uma necessidade humana fundamental – morar – e tornou-se uma mercadoria, ou seja, algo que é produzido e vendido no mercado a fim de gerar lucro.
A mercantilização da moradia é o resultado de uma forma histórica relativamente nova de acumulação de capital, marcada pela hegemonia das finanças e da extração do aluguel sobre o capital produtivo. Este processo de financeirização global do mercado imobiliário afeta, naturalmente, todas as pessoas que vivem sob o capitalismo. Mas a violência deste fenômeno, em combinação com o funcionamento burocrático das instituições alemãs, afeta de forma particularmente severa os órgãos de migrantes em Berlim. Devido à fragilidade dos vistos de trabalho, aos deficientes conhecimentos linguísticos e aos empregos mal remunerados nos setores de limpeza, entrega e cuidados, xs migrantes são as principais vítimas de discriminação ao se candidatar a um apartamento. Na falta de redes de contato e apoio para lidar com esta situação, a única alternativa é pagar preços exorbitantes por pequenos quartos que normalmente só podem ser subalugados ou alugados temporariamente. Sob tais condições de moradia frágeis, é praticamente impossível registrar o endereço de uma pessoa nos órgãos públicos. Este obstáculo se torna o ponto de partida de um círculo vicioso de precariedade que consome a vida migrante em Berlim: sem Anmeldung, novos cidadãos permanecem excluídos dos bens e serviços urbanos mais básicos.
As lutas de Berlim pelo Direito à Cidade e o novo papel dxs migrantes a esse propósito
Berlim tem uma longa tradição de protestos urbanos. Em épocas diferentes a partir dos anos 70, amplos setores da população se organizaram para deter a demolição de casas antigas em bairros da classe trabalhadora [Altbauviertel], para deter a construção de auto-estradas e grandes projetos de infra-estrutura, e para preservar o caráter público de espaços característicos como o Gleisdreick, o Görlitzer Park e, mais recentemente, o Tempelhofer Feld. Um dos principais protagonistas destas lutas foi o setor da esquerda autonomista que, juntamente com estudantes, desempregadxs e marginalizadxs, organizou um movimento de ocupação [Hausbesetzerbewegung] que, durante os anos 80, assumiu o controle de mais de 200 casas em Kreuzberg e, após a queda do Muro, 130 em Friedrichshain. Mulheres e dissidentes sexuais escreveram um capítulo importante e muitas vezes esquecido nesta história de luta urbana. Elxs atravessaram várias experiências habitacionais anti-patriarcais baseadas na cooperação, que resultaram em experiências lendárias como Hexenhaus, Bülowstraße 55 e Tuntenhaus Forellenhof.
Mas durante os anos 90, ao mesmo tempo em que a grande maioria dos projetos habitacionais auto-geridos de Berlim estava sendo legalizada pelas autoridades políticas ou despejada pela polícia, o governo da cidade iniciou um processo grande e sistemático de venda de lotes de construção e moradia social a investidores privados. Entre 1990 e 2017, foi vendido um total de 21 milhões de metros quadrados de terrenos públicos, ou seja, uma área igual ao distrito de Friedrichshain-Kreuzberg. Das 590.000 unidades de moradia social disponíveis na cidade no início deste período, apenas cerca de 270.000 permaneceram em 2010. É importante notar que a maioria destas 320.000 moradias não foi transferida para proprietários individuais, mas para grandes consórcios imobiliários como Deutsche Wohnen, Akelius & Co. e Vonovia, cujo objetivo principal é aumentar constantemente o valor de suas ações, aprofundando os processos de comoditização habitacional e segregação urbana discutidos acima.
Como resultado da pressão social e política da população e das organizações representativas dos interesses de inquilinxs, o Senado de Berlim aprovou em 24 de fevereiro de 2020 uma lei que estabelece um limite para o preço de aluguel de certos tipos de moradia [Mietendeckel]. As grandes preocupações que isto suscitou dentro do lobby imobiliário e do partido liberal (FDP), a democracia cristã (CDU) e a extrema direita (AfD) foram decisivas para que a legislação fosse declarada nula pelo Supremo Tribunal Federal [Bundesverfassungsgericht] após cerca de um ano de vigência. Entretanto, no contexto da crise geral desencadeada pelo Covid-19, a insatisfação social causada pelo pagamento retroativo das diferenças recebidas pelxs inquilinxs beneficiárixs do Mietendeckel criou um clima propício ao triunfo da campanha Deutsche Wohnen & Co. Enteignen. Organizada por vários atores individuais e coletivos, esta iniciativa conseguiu aprovar um plebiscito em 26 de setembro de 2021 que propõe a expropriação de 243.000 unidades habitacionais em Berlim que estão nas mãos dos três grandes consórcios mencionados acima. O projeto de lei consiste em compensar xs acionistas pelo preço real dos imóveis através de uma instituição de direito público [Anstalt des öffentlichen Rechts]. No entanto, o lobby imobiliário e a aliança parlamentar acima mencionada, da qual o SPD também é cúmplice, conseguiram bloquear sua implementação durante os últimos dois anos.
Uma característica novedosa desta recente fase da luta pelo direito à cidade está relacionada com a participação política dxs migrantes. Enquanto os conflitos pelas ocupações em Kreuzberg durante os anos 80 foram liderados por grupos alemães de esquerda, os protestos do novo século foram caracterizados pelo protagonismo que as famílias racializadas ganharam em iniciativas de bairro como Kotti & Co ou o acampamento em Oranienplatz e a ocupação do prédio da escola Gerhard-Hauptmann por migrantes e imigrantes ilegais entre 2012 e 2014. Estas experiências são importantes porque dão visibilidade, pela primeira vez, a diferentes grupos que antes tinham sido marginalizados dos debates urbanos, dando-lhes a possibilidade de exigir respostas aos problemas que os afligem: quem tem o direito de viver no “centro” da cidade? Quem tem mais recursos econômicos, quem vive aqui há gerações, ou quem se identifica com um estilo de vida urbano particular, e com base em que critérios são definidos esses costumes e estilos de vida? É possível defendê-los contra o avanço da mercantilização? Que papel desempenham nesse sentido os setores da população urbana que são excluídos do direito de voto e, conseqüentemente, da democracia na cidade?
Traduzir a linguagem de luta da produção social do habitat
Ciudad Migrante é um espaço organizado pelo Bloque Latinoamericano, no qual qualquer pessoa interessada em refletir sobre a forma específica em que o mercado imobiliário e a burocracia afetam o desenvolvimento da vida migrante em Berlim pode participar. Seu principal objetivo é desenvolver, com base na autogestão e na ajuda mútua, soluções coletivas para o problema do acesso à moradia. Durante o ano passado, xs participantes da iniciativa desenvolveram várias ferramentas de comunicação que ajudam migrantes a entender melhor seus direitos como inquilinxs e, acima de tudo, a serem capazes de defendê-los. Em cooperação com artistas e geógrafxs, foram produzidas ilustrações, vídeos, textos e mapas que fornecem orientação crítica sobre como navegar no processo de encontrar um apartamento em Berlim. De forma prática e acessível, estes recursos explicam como obter um quarto, quais são as características, direitos e obrigações dos diferentes tipos de contratos de locação, quais são os golpes comuns a serem observados, quais recursos existem para lidar com a violência de gênero no lar, e muitas outras informações indispensáveis que nem sempre são óbvias quando se chega a uma cidade desconhecida.
Mas além de sua função analítica e comunicativa, as ferramentas da Ciudad Migrante foram concebidas como instrumentos de treinamento e ação política para lutar contra a precariedade gerada pela burocracia e pelo mercado imobiliário. Estes recursos expressam as necessidades concretas da população latina em Berlim, mas com inspiração política emprestada pelos Consejos Comunales na Venezuela, a Federación Uruguaya de Cooperativas por la Ayuda Mutua (FUCVAM), o Movimiento de Ocupantes e Inquilinos (MOI) na Argentina e o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) no Brasil, para citar apenas algumas das experiências mais conhecidas de luta urbana nos territórios de origem. Apesar da grande diversidade de tradições políticas em jogo, todas estas organizações são o efeito do protagonismo que os setores populares têm desempenhado nos processos de produção social do habitat. É esta linguagem comum de autogestão que o Bloque Latinoamericano escolhe traduzir para dizer com voz própria, diante do Estado e dos partidos parlamentares em Berlim, os termos e condições de sua luta migrante pelo direito à cidade.
traduzido em português por maria
[1] Esta é a principal conclusão do estudo “Construir y habitar en la crisis – Evolución actual y repercusiones en la construcción y los mercados de la vivienda” apresentado em 12.01.2023. A análise foi encomendada pela iniciativa de Berlim “Moradia social” [Soziales Wohnen], que inclui o sindicato IG BAU, a associação de inquilinxs [Mieterbund], uma unidade social da Cáritas e duas associações de construtores.